Tesouro da credibilidade

Dom Walmor Oliveira de Azevedo

Tesouro da credibilidade

Dom Walmor Oliveira de Azevedo Arcebispo de Belo Horizonte

O tesouro da credibilidade está em baixa e merece atenção. Segundo pesquisa divulgada pelo Ibope, 62% dos brasileiros têm desconfiança uns dos outros. A referência à confiança depositada nos próprios familiares - 73% dos entrevistados - é um sinal de esperança e da centralidade da família na vida de cada pessoa e da sociedade. O núcleo familiar será sempre o ponto de partida e fonte perene de referências, escola vivencial para aprendizagem do amor e da fidelidade a Deus e aos outros. Cada pessoa é um dom e seu cultivo começa na família, primeiro e insubstituível berço da sua história. A família é uma célula vital para a sociedade.

Quando se pensa a ecologia humana, tão determinante na luta por mudanças na sociedade em crise, a instância família é fundamental. Trata-se da escola da reciprocidade, um sentido que se não for aprendido compromete, consequentemente, o tesouro da credibilidade sobre o qual as relações sociais e políticas se sustentam. O clima natural do afeto familiar possibilita, a cada indivíduo, exercitar a competência de ser reconhecido e responsabilizado. Qualquer comprometimento desse núcleo inviabiliza os andamentos adequados da vida cidadã, favorece a lamentável cultura da corrupção, pois se perde o gosto e o apreço prioritário pela honra.

O sentido de honra não aprendido na família alimenta uma sociedade individualista, responsável por descompassos que atormentam a vida cotidiana. Gera a violência crescente, a ganância, a permissividade e a manipulação de pessoas. Favorece o abominável tráfico humano, a escravidão, que coloca a sociedade contemporânea na contramão do caminho para a civilidade. O gosto pela honra é, portanto, um dos capítulos fundamentais na aprendizagem familiar, sustentáculo de tudo, desde a transparência e fidelidade à palavra dada até os mais complexos comprometimentos na ordem do respeito e da promoção da dignidade humana.

A configuração e entendimentos da economia e das relações sociais contemporâneas sofrem de deteriorações muito graves. O tesouro da credibilidade vai sendo corroído. Na raiz desses problemas, está uma triste constatação: não se dá o devido apreço à honra. É saudosa a recordação de figuras familiares, religiosas, cidadãs que primavam pela importância deste princípio. O descuido com este princípio é o consequente processo de negociação da própria dignidade, abrindo-se ao “vale tudo”, desde que interesses particulares, como as conquistas de posições, garantias de comodidades e satisfação do desejo de possuir sempre mais, sejam alcançados.

Está posto o desafio, diante da ameaça ao tesouro da credibilidade na sociedade brasileira, de investir na reversão desse quadro a partir da recuperação e adequada valorização da honra. Uma qualidade que é o esplendor da vida humana. Sua conquista é presidida pela consciência de se adotar condutas marcadas pela autenticidade, jamais por artimanhas, qualquer tipo de mentiras ou trapaças, posturas que justificam o preocupante dado que aponta a pesquisa: 82% dos entrevistados acreditam que a maioria das pessoas só se preocupa com o próprio benefício. Quando a consciência perde a sua configuração, que inclui o gosto da honestidade, da transparência e da tranquilidade, cresce a ameaça. É acentuada a gravíssima crise moral que assola e dizima a sociedade contemporânea.

O apreço e respeito aos princípios, o cultivo da credibilidade, encontram força na palavra de Santo Agostinho, no seu Livro das Confissões. Ele comenta: “Encontrei muitos com desejos de enganar os outros, mas não encontrei ninguém que quisesse ser enganado. Por que é que os homens têm como inimigo aquele que prega a verdade, se amam a vida feliz, que não é mais que a alegria vinda da verdade?” A verdade, em tudo e em todas as circunstâncias, foge do desejo de enganar, gera e sustenta condutas cidadãs, com força para a ordem da justiça. É hora de investimentos para debelar o caos da avassaladora crise moral contemporânea, aprendendo e ensinando sobre o valor do tesouro da credibilidade.

Um ano de pontificado

Dom Luiz Demétrio Valentini

Um ano de pontificado

Dom Luiz Demétrio Valentini

Bispo de Jales (SP)

Já foram feitas muitas análises do primeiro ano de pontificado do Papa Francisco. A intenção não é fazer aqui mais uma. Mas simplesmente conferir qual o novo panorama eclesial que resulta deste primeiro ano com o Papa Francisco.

Olhando a partir deste primeiro aniversário, as propostas do Papa Francisco vão se definindo. Ele conseguiu retomar o impulso de renovação da Igreja, levantado pelo Concílio, e agora direcionado por algumas iniciativas renovadoras, ainda claramente muito tímidas.

Uma das atitudes do novo Papa, foi pedir que todos rezassem por ele. Agora, no seu primeiro aniversário de papa, ele volta a insistir na mesma tecla.

Aos poucos vai ficando claro qual o motivo desta insistência. Não é só porque, como todos nós, ele também precisa da graça de Deus para cumprir sua missão. Mas certamente é também porque ele se dá conta do desafio que assumiu, de retomar o processo de renovação da Igreja, com todas as implicações que isto suscita.

Na verdade, são tantas as frentes que se abrem quando se trata de mudar a Igreja, para que ela esteja mais de acordo com o Evangelho de Cristo e próxima ao homem de hoje.

Ninguém se atreve a mudar a Igreja, sem contar com o apoio da própria Igreja!

Por isto, o Papa Francisco, que conseguiu “capitalizar” tanta admiração e tantas adesões, esclareceu logo que a grande reforma precisa ter como sujeito a própria Igreja, como povo de Deus que assume sua missão de viver o Evangelho, e testemunhá-lo para os outros.

Portanto, é uma tarefa de todos.

A “nova evangelização” não se faz por um gesto isolado de alguém, mesmo que seja um papa iluminado e decidido. Não se repete mais a cena de Davi e Golias. Daquela vez, o gigante Golias foi surpreendido pela pedra arremessada pelo jovem Davi. Por sua façanha, Davi foi muito aplaudido pelo povo.

Hoje não se repetem mais tais proezas. Mesmo que surja um outro Davi, hoje os Golias usam capacete. E o que é mais complicado, os Golias mudaram de lado, incorporaram as velhas estruturas eclesiais, que oferecem as mais duras resistências às urgentes reformas de que a Igreja necessita.

Para não se sentir sozinho nesta grande empreitada, o Papa Francisco propõe uma ampla “conversão pastoral”.

Esta conversão pastoral tem sua dinâmica mais forte na proposta de uma “Igreja de portas abertas”, não só para acolher os que ainda a procuram mas sobretudo para sair ao encontro dos outros, tornando-se uma Igreja mais missionária.

Temos que reconhecer que não é fácil fazer esta “conversão pastoral”. Certamente, ela não consistirá em aumentar as atividades pastorais, mas em dar-lhe um espírito diferente, de mais abertura missionária e de proximidade com o povo.

Nestes dias temos pela frente a celebração da Páscoa, a festa anual da renovação da vida. Mas temos também pela frente a “conversão pastoral”, para a qual o Papa nos convida com insistência.

Poço de Jacó

Dom José Alberto Moura

Poço de Jacó

Dom José Alberto Moura Arcebispo de Montes Claros (MS)

O encontro de Jesus com a samaritana frente ao poço de Jacó traz-nos sobejo alimento para nossa preparação à celebração da Páscoa. Jesus pede a água material para saciar sua sede física. Ele prova ter natureza humana. Ao mesmo tempo ele promete à mulher a água viva que sacia a sede de infinito, trazida da fonte do amor de Deus. O conhecimento manifestado pelo Mestre sobre a história da vida da samaritana a faz vislumbrar-se e anunciar a todos a presença do Messias (Cf. João 4,5-42). Na vida desregrada dela podemos contemplar as dificuldades e os entraves da convivência humana nem sempre acertada com os ditames da proposta divina.

No poço humano de nossa caminhada encontramos a variedade de situações angustiantes. Não por menos tratamos na Quaresma sobre o porquê da vida no seguimento a Jesus Cristo. No colóquio com Ele vamos percebendo a dimensão do humano entrecruzado com o divino. O desejo da água viva do Messias nos faz pessoas com vontade de crescimento. Precisamos da água e de tudo o que é material. Mas devemos saber usá-los na perspectiva da vida de sentido. Na realidade das injunções humanas e desumanas encontramos todo tipo de convivência, inclusive à do tráfico de pessoas. Aí acontece a exploração dos mais frágeis pelos inescrupulosos, tirando vantagem econômica dos feitos escravos, comercializados, agredidos física, sexual e moralmente. Crianças, jovens, mulheres são usados como meio de ganho, crianças usadas como fontes de extração de órgãos para serem transplantados em outras pessoas de outros lugares. Há mão de obra escrava, discriminações e desrespeito à dignidade humana. Tudo isso se nos é apresentado à consideração na Campanha da Fraternidade para o colocarmos no encaminhamento da fé transformadora, levando-nos a assumir a água viva do Cristo que nos faz ressuscitar para uma vida de verdadeira justiça e fraternidade. Sem compromisso com a promoção da vida humana digna e justa não há celebração da Páscoa! Ele se dá na conversão para vivermos da água viva do amor de Deus, que nos faz solidários e comprometidos em também darmos aos outros a vida que Jesus nos trouxe.

Somos convidados a participar do encontro de Jesus com a samaritana junto ao poço de Jacó. Talvez sejamos como aquela mulher, necessitada da mudança de vida, sendo alimentados com a água viva do Salvador. Com ela vamos chamar as pessoas para escutarem e seguirem a Jesus. Precisamos de descruzar os braços para implantarmos em nosso convívio os valores do Senhor. A cidadania é desrespeitada demais. As famílias são esfaceladas com a mentalidade consumista e hedonista. A juventude precisa de quem lhe dê um norte diferente da droga, da corrupção política, do descompromisso com os valores da justiça, da promoção da formação e educação na fé para assumirmos os valores éticos e da convivência fraterna. Isto se faz na doação de si, na busca de um ideal de promoção da vida digna para todos, a partir dos mais deixados de lado e descriminados.

A formação da fé nos leva a seguirmos os passos do Mestre e obtemos a paz, tão necessária no convívio humano, como lembra Paulo: “Irmãos, justificados pela fé, estamos em paz com Deus” (Romanos 5,1).

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A QUARESMA DE 2014

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA A QUARESMA DE 2014

24/fev/2014

Fez-Se pobre, para nos enriquecer com a sua pobreza

(cf.2 Cor 8, 9)

Queridos irmãos e irmãs!

Por ocasião da Quaresma, ofereço-vos algumas reflexões com a esperança de que possam servir para o caminho pessoal e comunitário de conversão. Como motivo inspirador tomei a seguinte frase de São Paulo: «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo, que, sendo rico, Se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza» (2 Cor 8, 9). O Apóstolo escreve aos cristãos de Corinto encorajando-os a serem generosos na ajuda aos fiéis de Jerusalém que passam necessidade. A nós, cristãos de hoje, que nos dizem estas palavras de São Paulo? Que nos diz, hoje, a nós, o convite à pobreza, a uma vida pobre em sentido evangélico?

 

A graça de Cristo

Tais palavras dizem-nos, antes de mais nada, qual é o estilo de Deus. Deus não Se revela através dos meios do poder e da riqueza do mundo, mas com os da fragilidade e da pobreza: «sendo rico, Se fez pobre por vós». Cristo, o Filho eterno de Deus, igual ao Pai em poder e glória, fez-Se pobre; desceu ao nosso meio, aproximou-Se de cada um de nós; despojou-Se, «esvaziou-Se», para Se tornar em tudo semelhante a nós (cf. Fil 2, 7;Heb 4, 15). A encarnação de Deus é um grande mistério. Mas, a razão de tudo isso é o amor divino: um amor que é graça, generosidade, desejo de proximidade, não hesitando em doar-Se e sacrificar-Se pelas suas amadas criaturas. A caridade, o amor é partilhar, em tudo, a sorte do amado. O amor torna semelhante, cria igualdade, abate os muros e as distâncias. Foi o que Deus fez connosco. Na realidade, Jesus «trabalhou com mãos humanas, pensou com uma inteligência humana, agiu com uma vontade humana, amou com um coração humano. Nascido da Virgem Maria, tornou-Se verdadeiramente um de nós, semelhante a nós em tudo, excepto no pecado» (Conc. Ecum. Vat. II, Const. past.Gaudium et spes, 22).

A finalidade de Jesus Se fazer pobre não foi a pobreza em si mesma, mas – como diz São Paulo – «para vos enriquecer com a sua pobreza». Não se trata dum jogo de palavras, duma frase sensacional. Pelo contrário, é uma síntese da lógica de Deus: a lógica do amor, a lógica da Encarnação e da Cruz. Deus não fez cair do alto a salvação sobre nós, como a esmola de quem dá parte do próprio supérfluo com piedade filantrópica. Não é assim o amor de Cristo! Quando Jesus desce às águas do Jordão e pede a João Baptista para O baptizar, não o faz porque tem necessidade de penitência, de conversão; mas fá-lo para se colocar no meio do povo necessitado de perdão, no meio de nós pecadores, e carregar sobre Si o peso dos nossos pecados. Este foi o caminho que Ele escolheu para nos consolar, salvar, libertar da nossa miséria. Faz impressão ouvir o Apóstolo dizer que fomos libertados, não por meio da riqueza de Cristo, mas por meio da sua pobreza. E todavia São Paulo conhece bem a «insondável riqueza de Cristo» (Ef 3, 8), «herdeiro de todas as coisas» (Heb 1, 2).

Em que consiste então esta pobreza com a qual Jesus nos liberta e torna ricos? É precisamente o seu modo de nos amar, o seu aproximar-Se de nós como fez o Bom Samaritano com o homem abandonado meio morto na berma da estrada (cf. Lc 10, 25-37). Aquilo que nos dá verdadeira liberdade, verdadeira salvação e verdadeira felicidade é o seu amor de compaixão, de ternura e de partilha. A pobreza de Cristo, que nos enriquece, é Ele fazer-Se carne, tomar sobre Si as nossas fraquezas, os nossos pecados, comunicando-nos a misericórdia infinita de Deus. A pobreza de Cristo é a maior riqueza: Jesus é rico de confiança ilimitada em Deus Pai, confiando-Se a Ele em todo o momento, procurando sempre e apenas a sua vontade e a sua glória. É rico como o é uma criança que se sente amada e ama os seus pais, não duvidando um momento sequer do seu amor e da sua ternura. A riqueza de Jesus é Ele ser o Filho: a sua relação única com o Pai é a prerrogativa soberana deste Messias pobre. Quando Jesus nos convida a tomar sobre nós o seu «jugo suave» (cf. Mt 11, 30), convida-nos a enriquecer-nos com esta sua «rica pobreza» e «pobre riqueza», a partilhar com Ele o seu Espírito filial e fraterno, a tornar-nos filhos no Filho, irmãos no Irmão Primogénito (cf.Rm 8, 29).

Foi dito que a única verdadeira tristeza é não ser santos (Léon Bloy); poder-se-ia dizer também que só há uma verdadeira miséria: é não viver como filhos de Deus e irmãos de Cristo.

O nosso testemunho

Poderíamos pensar que este «caminho» da pobreza fora o de Jesus, mas não o nosso: nós, que viemos depois d’Ele, podemos salvar o mundo com meios humanos adequados. Isto não é verdade. Em cada época e lugar, Deus continua a salvar os homens e o mundo por meio da pobreza de Cristo, que Se faz pobre nos Sacramentos, na Palavra e na sua Igreja, que é um povo de pobres. A riqueza de Deus não pode passar através da nossa riqueza, mas sempre e apenas através da nossa pobreza, pessoal e comunitária, animada pelo Espírito de Cristo.

À imitação do nosso Mestre, nós, cristãos, somos chamados a ver as misérias dos irmãos, a tocá-las, a ocupar-nos delas e a trabalhar concretamente para as aliviar. Amiséria não coincide com a pobreza; a miséria é a pobreza sem confiança, sem solidariedade, sem esperança. Podemos distinguir três tipos de miséria: a miséria material, a miséria moral e a miséria espiritual. A miséria material é a que habitualmente designamos por pobreza e atinge todos aqueles que vivem numa condição indigna da pessoa humana: privados dos direitos fundamentais e dos bens de primeira necessidade como o alimento, a água, as condições higiénicas, o trabalho, a possibilidade de progresso e de crescimento cultural. Perante esta miséria, a Igreja oferece o seu serviço, a sua diakonia, para ir ao encontro das necessidades e curar estas chagas que deturpam o rosto da humanidade. Nos pobres e nos últimos, vemos o rosto de Cristo; amando e ajudando os pobres, amamos e servimos Cristo. O nosso compromisso orienta-se também para fazer com que cessem no mundo as violações da dignidade humana, as discriminações e os abusos, que, em muitos casos, estão na origem da miséria. Quando o poder, o luxo e o dinheiro se tornam ídolos, acabam por se antepor à exigência duma distribuição equitativa das riquezas. Portanto, é necessário que as consciências se convertam à justiça, à igualdade, à sobriedade e à partilha.

Não menos preocupante é a miséria moral, que consiste em tornar-se escravo do vício e do pecado. Quantas famílias vivem na angústia, porque algum dos seus membros – frequentemente jovem – se deixou subjugar pelo álcool, pela droga, pelo jogo, pela pornografia! Quantas pessoas perderam o sentido da vida; sem perspectivas de futuro, perderam a esperança! E quantas pessoas se vêem constrangidas a tal miséria por condições sociais injustas, por falta de trabalho que as priva da dignidade de poderem trazer o pão para casa, por falta de igualdade nos direitos à educação e à saúde. Nestes casos, a miséria moral pode-se justamente chamar um suicídio incipiente. Esta forma de miséria, que é causa também de ruína económica, anda sempre associada com a miséria espiritual, que nos atinge quando nos afastamos de Deus e recusamos o seu amor. Se julgamos não ter necessidade de Deus, que em Cristo nos dá a mão, porque nos consideramos auto-suficientes, vamos a caminho da falência. O único que verdadeiramente salva e liberta é Deus.

O Evangelho é o verdadeiro antídoto contra a miséria espiritual: o cristão é chamado a levar a todo o ambiente o anúncio libertador de que existe o perdão do mal cometido, de que Deus é maior que o nosso pecado e nos ama gratuitamente e sempre, e de que estamos feitos para a comunhão e a vida eterna. O Senhor convida-nos a sermos jubilosos anunciadores desta mensagem de misericórdia e esperança. É bom experimentar a alegria de difundir esta boa nova, partilhar o tesouro que nos foi confiado para consolar os corações dilacerados e dar esperança a tantos irmãos e irmãs imersos na escuridão. Trata-se de seguir e imitar Jesus, que foi ao encontro dos pobres e dos pecadores como o pastor à procura da ovelha perdida, e fê-lo cheio de amor. Unidos a Ele, podemos corajosamente abrir novas vias de evangelização e promoção humana.

Queridos irmãos e irmãs, possa este tempo de Quaresma encontrar a Igreja inteira pronta e solícita para testemunhar, a quantos vivem na miséria material, moral e espiritual, a mensagem evangélica, que se resume no anúncio do amor do Pai misericordioso, pronto a abraçar em Cristo toda a pessoa. E poderemos fazê-lo na medida em que estivermos configurados com Cristo, que Se fez pobre e nos enriqueceu com a sua pobreza. A Quaresma é um tempo propício para o despojamento; e far-nos-á bem questionar-nos acerca do que nos podemos privar a fim de ajudar e enriquecer a outros com a nossa pobreza. Não esqueçamos que a verdadeira pobreza dói: não seria válido um despojamento sem esta dimensão penitencial. Desconfio da esmola que não custa nem dói.

Pedimos a graça do Espírito Santo que nos permita ser «tidos por pobres, nós que enriquecemos a muitos; por nada tendo e, no entanto, tudo possuindo» (2 Cor 6, 10). Que Ele sustente estes nossos propósitos e reforce em nós a atenção e solicitude pela miséria humana, para nos tornarmos misericordiosos e agentes de misericórdia. Com estes votos, asseguro a minha oração para que cada crente e cada comunidade eclesial percorra frutuosamente o itinerário quaresmal, e peço-vos que rezeis por mim. Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde!

Vaticano, 26 de Dezembro de 2013

Festa de Santo Estêvão, diácono e protomártir

FRANCISCO

Receita de Santidade

Receita de Santidade

Sexta, 21 Fevereiro 2014 11:34cnbb

Dom Alberto Taveira Corrêa Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará

Muitas vezes temos diante de nossos olhos bulas de remédios, outras são as longas orientações anexas aos muitos aparelhos eletrônicos. Nem sempre lemos tudo isso, ainda que saibamos o quanto são úteis para nossa vida. Os eventuais efeitos secundários de medicamentos usados indevidamente podem trazer consequências graves, e o desconhecimento de possibilidades oferecidas pelos recursos tecnológicos limita o pleno aproveitamento dos mesmos. Quanto à saúde não são supérfluas ou indiferentes às prescrições constantes nas receitas médicas.

E a vida cristã comporta receitas? É possível encontrar um tipo de manual, com o qual caminhar com mais segurança na estrada da perfeição cristã? O Senhor põe à nossa disposição prescrições destinadas à nossa saúde espiritual? Para responder a esta pergunta, é bom lembrar-nos que, ao criar-nos com o precioso dom da liberdade, Deus quis assentar-se conosco à mesa da vida (Cf. Ap 3,20), para que acolhamos seu convite e abramos a porta do coração. Como somos obra prima de sua criação, é claro que Ele oferece o que existe de melhor para os que são feitos filhos e filhas. O ponto de partida para a viagem da vida é que Deus nos leva a sério e nos fez livres, para sermos felizes, como Deus é feliz.

O Catecismo da Igreja Católica começa com a feliz constatação de que o ser humano é “capaz de Deus” (Cf. números 27-35). De fato, “Deus não cessa de atrair o homem para si e só em Deus é que o homem encontra a verdade e a felicidade que procura sem descanso”. Através dos múltiplos sinais, começando pela sede de infinito existente no coração humano, o Senhor atrai para perto de si os homens e mulheres de todos os tempos, o que se torna fonte de alegria para todos. Vale a pena conhecer a busca incessante existente no coração das pessoas inquietas, que querem saber mais, conhecer, descobrir estradas novas!

Quando a Sagrada Escritura relata a entrega dos mandamentos ao Povo de Deus (Lv 19,1-2.17-18), inclui um convite provocante: “O Senhor disse a Moisés: Dirás a toda a assembleia de Israel o seguinte: ‘sede santos, porque eu, o Senhor, vosso Deus, sou santo”. Quando a Igreja se prepara para a canonização de dois Papas de nosso tempo, João XXIII e João Paulo II, faz muito bem saber que é possível percorrer o caminho da santidade. Mais ainda, é bom saber que é o melhor para todos. Não fomos feitos para chafurdar-nos na lama do pecado e do egoísmo, mas para a felicidade, a comunhão com Deus e uns com os outros. São Paulo (Cf. 1 Cor 3,16-23) usa uma feliz expressão, com a qual se identifica a presença contínua de Deus em nossa vida: “Não sabeis que sois o templo de Deus, e que o Espírito de Deus habita em vós?” Não dá para fugir! Como Deus não tem duas palavras, Ele está sempre perto de nós e, de sua parte, vai sempre insistir em que respondamos ao seu amor. Primeiro item de nossa “receita”: é possível caminhar na direção da perfeição e esta se chama santidade! Para alcançá-la, não se trata de fazer um caminho de heroísmo individual, mas de guardar a Palavra de Deus. De fato, é perfeito o amor de Deus em quem guarda sua palavra (Cf. 1Jo 2,5). Manter um diálogo constante com Deus, escutar sua Palavra que se encontra na Escritura e sua voz presente no grande Livro que é a vida! Para ser santos, antenas do coração e da inteligência ligadas nos grandes sinais de Deus.

E a Palavra do Evangelho (Mt 5,38-48), no Sermão da Montanha, desdobra um verdadeiro mapa da estrada da santidade, com itens extremamente práticos. Trata-se de seguir as orientações! Ao encontrar-nos em situações desafiadoras, não resistir ao mau, oferecer a outra face, ou a túnica, quem sabe mais mil passos, ou não fugir de quem pede dinheiro emprestado, amar os inimigos, fazer o bem aos que nos odeiam, orar pelos que nos perseguem. É natural nossa reação: seremos inativos ou tolos diante de quem nos agride? Trata-se, sim, de acreditar na força da não-violência, escolher os verdadeiros caminhos alternativos, com os quais se desmonta a trama da maldade. A paciência diante das agressões, a opção pela escuta dos que pensam de modo diferente, enxergar o lado das outras pessoas nas questões mais delicadas, exige muito mais força e coragem do que quebrar e destruir tudo que estiver à nossa volta.

Jesus sabia muito bem quais seriam as reações ao seu discurso e que estas ressoariam através dos séculos no interior das pessoas. Por isso mesmo, ofereceu o modelo para este novo modo de encarar a vida. Trata-se de olhar para o Pai do Céu, e basta ver o sol ou a chuva, que servem a bons e maus, justos e injustos! Estupenda e desafiadora simplicidade! Pagar o mal com o mal não é novidade. É fácil! “Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Não fazem isto também os pagãos?” (Mt 5, 47). Revolucionário é trazer para a terra o modo de viver que é próprio de Deus. Perfeição é uma ação do próprio Deus no coração do discípulo. Maior a docilidade, mais o Espírito Santo poderá agir em nós.

A proposta do Evangelho é de grande atualidade, pois nos possibilita criar, num mundo agressivo e violento, bolsões de vida mais digna e respeitosa. As famílias e as comunidades cristãs podem começar a ser diferentes. O exercício da gratuidade no relacionamento, a capacidade de gastar tempo para ouvir as pessoas, o cultivo de valores, como a simplicidade no trato ou a civilidade de novo cultivada. De forma muito prática, os cristãos exercitarão e ajudarão muitas outras pessoas a descobrirem que na vida social não se pode apenas e tão somente exigir direitos, mas há deveres a serem cumpridos e com os quais construímos a civilização. Se não nos cuidarmos, há um risco de verdadeira barbárie bem perto de nós, mas se começarmos a caminhar contra a correnteza do egoísmo, a mudança já começou, e para melhor.

Basta olhar ao nosso redor. Pode começar com o cumprimento mais polido aos vizinhos, para alcançar o cuidado dos estudantes com as carteiras escolares, ou as lixeiras conservadas e utilizadas em nossos espaços públicos, a superação da agressividade no trânsito e daí por diante!

A casa que é a Igreja será o lugar da formação e do intercâmbio de experiências, onde as pessoas são chamadas a compartilhar suas experiências de vida, alimentar-se do próprio Deus e rezar umas pelas outras. Como sabemos muito bem de nossas limitações, peçamos ao próprio Pai do Céu que nos ajude: “Concedei-nos, ó Deus todo-poderoso, que, procurando conhecer o que é reto, realizemos vossa vontade em nossas palavras e ações”.